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A transformação nos sistemas de proteção social do Leste Asiático, por Pedro M. R. Barbosa

Dos choques econômicos se desdobraram as transformações impulsionadas nos sistemas de proteção social a partir dos anos 2000.

Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

A transformação nos sistemas de proteção social do Leste Asiático a partir dos 2000

por Pedro M. R. Barbosa

Os países do Leste Asiático foram recorrentemente objetos de análise no campo de estudos de desenvolvimento econômico, em razão de suas proeminentes performances econômicas ao longo do século XX.  O Japão é o pioneiro em realizar o processo de catching up após os anos 1950; depois foram os tigres asiáticos — Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Singapura — a partir dos anos 1960; por último, China, Tailândia, Indonésia e Vietnã impulsionaram seus processos de industrialização a partir de meados dos anos 1970 e 1980.

Intrigante nas trajetórias desses países é que suas performances econômicas não se traduziram na expansão de seus sistemas de proteção social. É notório que tais sistemas eram bastante limitados durante o período nacional-desenvolvimentista (1950-1990), seja do ponto de vista dos riscos sociais cobertos (a maioria dos países passou a cobrir a aposentadoria por velhice só a partir dos anos 1950), seja do ponto de vista da proporção populacional com acesso ao sistema de previdência e de saúde. Na literatura comparada de políticas sociais, a classificação mais influente dos sistemas do Leste Asiático os descreve como “regimes de bem-estar produtivistas”. O termo “produtivismo” sublinha a submissão das políticas sociais ao objetivo maior de promoção do crescimento econômico. Certos autores asiáticos argumentam que, em contraste com os países ocidentais, as concepções de cidadania social e de direitos sociais não foram desenvolvidas na região. Nesse sentido, o padrão produtivista durante o período nacional-desenvolvimentista priorizava a política de educação como meio de impulsionar a produtividade, ao passo que o sistema de previdência e a política de saúde padeciam de níveis de financiamento e cobertura bastante restritos. Uma vez que as salvaguardas estatais — p. ex. seguro-desemprego e aposentadoria — aos riscos do mercado eram limitadas, o cerne da política de bem-estar nessa região radicava na garantia do pleno emprego, proporcionado pela estabilidade do crescimento econômico.

No entanto, tal estratégia explicitou seus limites diante das sucessivas crises econômicas eclodidas em meio ao cenário de aprofundamento da globalização econômica, a partir dos anos 1980, levando à maior instabilidade do mercado de trabalho.  No final dos anos 1980, o Japão foi afetado pela crise no seu sistema financeiro; em 1997, surgiu na Tailândia a crise financeira mais devastadora para a região cujos efeitos se propagaram por várias nações vizinhas, impactando severamente a Coreia do Sul.; e, por último, a crise financeira de 2008, originada nos Estados Unidos, que foi especialmente prejudicial para a China.

Desses choques econômicos se desdobraram as transformações impulsionadas nos sistemas de proteção social a partir dos anos 2000. Para entender essas transformações, é fundamental primeiro demarcar os diferentes legados institucionais estabelecidos até aquele momento. À luz de diversas tipologias apresentadas na literatura, é possível delinear três grupos de países cujos sistemas de proteção social são relativamente semelhantes entre si.

Primeiro, o grupo dos “individualistas” que inclui China, Singapura, Hong Kong e Malásia. Nesses países, os regimes políticos são autoritários e a proteção social é percebida em grande medida como uma responsabilidade individual. Por essa razão, seus sistemas de seguro seguem o modelo de fundos de pensões individuais, nos quais cabe aos trabalhadores depositarem parte de seus ganhos numa poupança individual para ter acesso a benefícios como aposentadoria e seguro-desemprego.  Serviços como o de saúde são em grande medida prestados pelo mercado.  Tais países apresentam também maiores níveis de desigualdade comparados ao grupo a seguir.

O segundo grupo é frequentemente chamado de “regimes inclusivos” que compreende Japão e Coreia do Sul (e Taiwan). Esses países seguiram uma trajetória de institucionalização da democracia ao longo do século XX, além de terem desenvolvido sistemas de previdência unificados e nacionalizados, no formato de repartição. Ou seja, tal como a maior parte dos sistemas europeus e latino-americanos, a proteção aos riscos sociais é em grande medida compartilhada coletivamente por meio de um sistema de transferências. Além disso, tais países dispõem dos sistemas de saúde públicos mais desenvolvidos da região. Seus sistemas de previdência e de saúde recebem o maior volume de financiamento público e apresentam os maiores níveis de cobertura populacional da região. Japão e Coreia do Sul exibem ainda os menores níveis de desigualdade regional.

O terceiro grupo, que classifico como regimes de bem-estar “incipientes”, inclui as Filipinas, Indonésia, Tailândia e Vietnã. Nesse grupo, os sistemas de seguro social e de saúde centralizados e nacionalizados foram desenvolvidos muito recentemente, isto é, a partir dos anos 2000. Seus níveis de financiamento público e de cobertura são os mais exíguos da região.  Os regimes políticos são heterogêneos entre esses países: democracias muito jovens como Filipinas e Indonésia; um regime político bastante instável como a Tailândia que fez a transição para a democracia nos 2000, mas sofreu dois golpes militares desde então; e um regime autoritário como o Vietnã.

Feito esse mapeamento dos legados institucionais, tratemos então das mudanças ocorridas após os anos 2000. Algumas tendências gerais na região podem ser sublinhadas: o avanço do gasto público em saúde e na previdência; a introdução de pensões mínimas para trabalhadores idosos não cobertos por nenhum sistema de seguro; e a ampliação da assistência social. Em termos médios, o aumento relativo mais expressivo no gasto público social foi na política de previdência. Além disso, embora por meio de modelos distintos, reformas nos sistemas de seguros e saúde foram realizadas após os anos 2000 com o objetivo de ampliar o acesso da população a esses benefícios. A educação continuou a ter um papel central, porém com enfoque crescente na educação superior, sobretudo nos países com maior renda per capita.

Entre os regimes inclusivos (Japão e Coreia do Sul), observa-se um aumento substantivo da cobertura e do financiamento público dos sistemas de previdência e saúde. A despeito do avanço da globalização ter exercido pressão para o aumento da desigualdade de renda no mercado, o Estado ampliou seu papel redistributivo, tanto no Japão quanto na Coreia. Ou seja, as transferências estatais foram cruciais em atenuar o avanço da desigualdade. Sobretudo o Japão atinge um grau de provisão e redistribuição equiparável ao padrão médio dos Estados de bem-estar europeus. Japão e Coreia também promoveram políticas de conciliação entre trabalho e família (ou desfamiliarização), com níveis de provisão e investimento comparáveis ou até superiores aos Estados de bem-estar europeus. Por volta dos anos 2010, a extensão da licença paternidade nesses países passou a superar a de países nórdicos; a oferta de creches para crianças na primeira infância foi fortemente expandida; e o Japão passou a se destacar pelo alto gasto e cobertura em serviços públicos de cuidado para idosos.   

A China se distancia do perfil individualista, ampliando a cobertura da seguridade social, desenvolvendo pensões mínimas para idosos não cobertos pela seguridade e expandindo o sistema de saúde público. A China é o país que apresenta o maior crescimento do gasto público na previdência social entre os anos 2000 e 2010. Reformas institucionais são implementadas para aprimorar o sistema de previdência. Contudo, o sistema continua a perpetuar a estratificação entre os setores urbano e rural, além da coexistência de um sistema de repartição com fundos de pensões individuais para trabalhadores urbanos. Além disso, ainda não existe uma política ativa de fornecimento de serviços de saúde para as regiões rurais.

Os demais “individualistas” como Singapura, Hong Kong e Malásia mantiveram a institucionalidade calcada em sistemas de pensões individuais e forte participação do mercado na provisão de serviços sociais. No entanto, em todos estes países houve expansão da assistência social e o desenvolvimento de pensões mínimas para conter a crescente pobreza.

Por último, os sistemas de proteção social “incipientes” (Indonésia, Filipinas, Tailândia e Vietnã) também expandiram suas políticas de assistência social. Inspirados pelas experiências latino-americanas, esses países impulsionaram políticas de transferências de renda condicionadas voltadas para famílias de baixa renda. Além disso, desenvolveram sistemas de seguro e saúde subsidiados e focalizados para trabalhadores informais e sem cobertura. A Tailândia se destaca por estabelecer um sistema de saúde universal a partir dos anos 2000, financiado com impostos, que rapidamente abrangeu mais de 70% da população.

Em resumo, as crises econômicas promoveram a reorganização das forças políticas internas nos países do Leste Asiático. Isso induziu seja a troca de governos em países democráticos (Japão, Coreia do Sul e Taiwan), seja o colapso de regimes autoritários (Filipinas, Indonésia e Tailândia). A maior vulnerabilidade dos mercados à volatilidade da economia internacional suscitou, por sua vez, uma maior atuação do Estado na proteção social em praticamente todos os países.

Para a versão completa desta análise:  https://doi.org/10.1590/1982-3533.2024v33n1art02

Pedro M. R. Barbosa – Pesquisador de Pós-Doutorado no Centro de Estudos da Metrópole (CEM/USP) e do GEEP/Iesp

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